Campinas, 05 de Outubro de 2024
MEU ARTIGO - ANA FONSECA
19/07/2020
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MEU ARTIGO
ALIMENTAÇÃO, SOCIEDADE E AMBIENTE
Ana Silvia Fonseca - 

A maior mudança que temos de fazer é ir do consumo para a produção, mesmo que em pequena escala, em nossos jardins. Daí a futilidade de revolucionários sem jardins, que dependem do próprio sistema que atacam, que produzem palavras e balas, mas não comida e abrigo. — Bill Mollison

Aalimentação é um dos fatores mais determinantes da sociedade humana contemporânea, pois se alimentar, hoje, é um ato político de grande envergadura, que envolve escolher quem vai viver e quem vai morrer, e como. O que comemos está por trás da maioria das doenças que mais têm nos levado à morte, conforme recentes estudos junto aos sistemas de saúde do Brasil e dos EUA. Uma dieta rica em proteína de origem animal, açúcares e alimentos ultraprocessados predispõe a doenças do sistema circulatório e cardiovascular,

cânceres e diabetes. O modo como o alimento é produzido também diz muito sobre como vivemos e morremos: não precisamos ser grandes especialistas para saber que, quanto mais agrotóxicos, antibióticos, excesso de transporte e de embalagens, e processamento industrial com aditivos químicos, mais doenças teremos, mais letais, e mais cedo. Comer carne animal, por exemplo, além de favorecer doenças como as cardiovasculares, as endócrinas, os tumores malignos e as do aparelho digestivo, é a causa da proliferação de vírus como os do tipo Corona, responsável pela atual pandemia de COVID-19 e de duas SARS anteriores, e também de vírus como H1N1, ou gripe suína, Ebola e o da gripe aviária. Esse consumo não é apenas uma adversidade para a saúde pública, mas também um dos maiores problemas ambientais da atualidade, junto à utilização de combustíveis fósseis. O impacto da produção de proteína animal é sentido em toda a cadeia da vida na Terra, interferindo na biodiversidade e consequentemente nos serviços ecossistêmicos. Mudar esse hábito traria consequências positivas em todas as esferas, sobretudo se associado a técnicas agroecológicas de produção de alimentos: preservação, ou baixa intervenção humana, de ambientes naturais e de sua biodiversidade; diminuição dos gases de efeito estufa e consequentemente das mudanças climáticas; diminuição de agroquímicos e medicamentos tóxicos utilizados na criação de animais, inclusive de antibióticos que nos têm tornado insensíveis aos antibióticos de uso humano; diminuição da crueldade animal, ambiental e social, observada no confinamento de animais e péssimas condições a quem trabalha em fazendas

e frigoríferos; diminuição da interferência hormonal no corpo humano em função do abate de animais cada vez mais jovens e, portanto, ainda repletos de hormônios de crescimento; e, consequentemente, aumento da saúde humana e da qualidade de vida da maioria das espécies do planeta. Alimentar um contingente de quase 8 bilhões de seres humanos tem se mostrado como uma questão central em nível mundial. A verdade é que, além da desigualdade econômica aparecer também na produção, distribuição e consumo de alimentos, com divisão extremamente desigual de proteínas, os impactos ambientais advindos da agricultura, da pecuária e da pesca predatórias têm colocado em risco diversas formas de vida na Terra, inclusive a humana. Essa conta não fecha: comemos carne e alimentos produzidos com excesso de agroquímicos para sobreviver, mas esse consumo nos coloca em risco de morte. E ainda causa extinção em massa de diversas outras espécies por variados motivos, inclusive pelo declínio dos recursos hídricos. A produção de alimentos corresponde a cerca de 30% das emissões de gases de efeito estufa no mundo, a maioria dela vem da pecuária. Rachel Nuwer, em matéria para a BBC, afirmou que “nos EUA, por exemplo, uma família de quatro pessoas emite mais gases de efeito estufa por comer carne do que por dirigir dois carros. Mas, em geral, são os veículos motorizados - e não os bifes - que aparecem como vilões nas discussões sobre o aquecimento global”. Por que então come-se ainda tanta carne? Por que tantos agrotóxicos? E por que tanto processamento industrial? A resposta pode estar no fato de a alimentação ser multidimensional.

As pesquisadoras em nutrição humana Inês Castro, Luciana Castro e Sílvia Gugelmim sistematizaram a multidimensionalidade da alimentação em: 1) Dimensão do Direito Humano - trata da alimentação adequada como direito previsto pela Organização das Nações Unidas, sendo que assumir esse direito é promover a sua exigibilidade e explicitar a obrigação do poder público em garantir seu cumprimento; 2) Dimensão Biológica - abarca aspectos fisiológicos da alimentação, elementos nutricionais e sanitários necessários ao pleno desenvolvimento e funcionamento do corpo humano, uma dimensão imprescindível mas que não dá conta de toda a complexidade da questão alimentar na contemporaneidade, pois coloca em segundo plano o contexto de vida de cada ser humano, sua subjetividade, sua história e sua inserção numa coletividade; 3) Dimensão Psicossocial e Cultural - reúne aspectos simbólicos da relação de indivíduos e sociedades com os alimentos e o ato de se alimentar, incluindo rituais diários ou específicos e sistemas de valores tanto sociais quanto subjetivos, englobando, portanto, no contexto contemporâneo, a relação das pessoas com o tempo, o trabalho, o corpo, o significado de saúde, a comunicação de massa e o ato de consumir; 4) Dimensão Ambiental - trata dos impactos ambientais dos modos de produção, transporte, comercialização e consumo dos alimentos hoje hegemônicos, e abrange também as relações da sociedade com o planeta que sejam sustentáveis, preservem e promovam a dignidade humana e a vida em toda a sua expressão; 5) Dimensão Econômica - de dupla vertente, enfoca tanto o sistema alimentar no contexto de

uma economia de mercado, com vencedores e perdedores e instabilidades periódicas, quanto as relações de trabalho, seja no âmbito da produção, armazenamento, transporte e comércio de alimentos, seja as que ocorrem no âmbito da produção de refeições coletivas, inclusive em programas do poder público, como o de alimentação escolar. O trabalho das autoras também apresenta sugestões de ações de incentivo, proteção e monitoramento para promoção da saúde através da nutrição, mas reconhecer os cinco pontos do aspecto multidimensional da alimentação já responde aos nossos questionamentos: em larga medida nos alimentamos mal porque nem sempre temos o pleno poder de escolha ou controle sobre a produção e distribuição de alimentos, sobre os interesses por trás dessa produção, sobre quem ganha dinheiro com isso, e sobretudo porque ignoramos quase que em sua totalidade o que ocorre nos bastidores da produção de alimentos, que vão dos aspectos jurídico-legislativos do que é permitido, à fabricação de agrotóxicos; do desmatamento para fins de agricultura ou pecuária extensivas, à contaminação do solo, da água e do ar; da perda de biodiversidade, ao ultraprocessamento industrial; e dos custos humanos e ambientais do armazenamento, transporte e distribuição, à toxicidade das embalagens, desde sua produção até a utilização e o descarte.

Para assumirmos a alimentação como ato político de grande envergadura, é necessário agir em três direções: • Conhecimento - conhecer os sistemas produtivos agropecuários (por exemplo, a diferença entre agronegócio e agroecologia) e industriais (processamentos), seus métodos, técnicas e consequências à saúde e ao meio ambiente, e conhecer minimamente o metabolismo humano e a fisiologia dos nutrientes; • Responsabilização - tomar as rédeas da própria alimentação em todo seu espectro, da produção ao consumo, incentivando a produção de alimentos de baixo impacto social e ambiental, escolhendo de quem comprar e onde comprar, sempre o mais local possível e preparando, sempre que viável, os alimentos em casa; e • Organização - formar grupos, ou engajar-se a grupos já existentes, de consumo consciente e/ou em defesa do meio ambiente nas mais diferentes frentes, atuando também em termos de comunicação e educação dentro e fora das famílias e das escolas. Essas direções também podem nos ajudar na conscientização sobre a desigualdade social e alimentar em que vivemos e sobre a padronização, que se dá através da comunicação de massa, de comportamentos de consumo, seja pela divulgação de pesquisas que servem aos interesses de grandes conglomerados produtivos, seja pela publicidade ou pelos valores simbólicos que nos chegam via indústria cultural.

*A Doutora em Linguística Aplicada. É docente do ciclo comum de estudos. Participou como professora do curso “Educação para a Ecologia e Sociedade na América Latina” organizado pela SESUNILA e SINPREFI em 2019.

O ARTIGO FOI ORIGINALMENTE PUNO CADERNO SESUNILA N.3

 https://issuu.com/sesunila/docs/caderno_sesunila_n3_junho2020/s/10759827

Piratas do Tietê, Sem data Laerte

 
 
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